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Foto do escritorPuri Vivo

Um causo, uma história, minha história¹. por Carmelita Lopes - Náma Puri²


Resolvi contar esse “causo”, minha história, na tentativa de arrumar as ideias.

Quem já ouviu falar dentro ou fora da família que teve ou tem uma vó, bisavó ou trisavó “pega no laço”? Eu também, e numa das vezes que me sentei com minha mãe, pedi que me contasse sobre nossa família. E, agora, resolvi contar esse “causo”, essa história, minha história.


Numa das poucas vezes que minha mãe veio me visitar - não fui crida por ela, fui adotada por uma família aos quatro anos e só tiver maior aproximação quando adulta - sentei-me com ela e pedi que me contasse sobre nossa família, porque na minha certidão de nascimento só constavam meu o nome e o dela. Era o bastante para ela retrucar brava:

- Issu foi coisa da cumadi Teresinha! Purcaus diquê quiria a certidãu pra ocê entrá na iscola... i foi fazendu.

Depois de entender que eu só queria saber sobre os parentes, danou a contar sobre seus irmãos... seus pais... avós... bisavós... tios.... Corri. Peguei um caderno e uma caneta e comecei a montar minha árvore genealógica, mostrando pra ela como estava ficando. Naquele momento parecia simples.

Minha mãe me disse que a mãe da mãe da mãe dela, minha trisavó materna, era Custódia. Até aí tudo bem, só que, segundo ela, era “negra puri pega no laço” e adotada na Serra da Onça, em Guidoval, Minas Gerais (no início do século XIX). Quis saber o que era negra puri. Respondeu como se fosse fácil entender este biótipo tão distante de minha realidade:

- Uai... nega de cabelu bão, sô.

- Entendi...

Depois perguntei sobre meu trisavô materno, mas ela não sabia me dizer. Segundo ela ainda, minha trisavó teve duas filhas: Maria Elisa e Amélia Rosa, minha bisavó, que se casou com meu bisavô materno, Régio da Silva, também adotado na Serra da Onça, em Guidoval, Minas Gerais. Só que este era cabo verde. Tratou logo de explicar que cabo verde tinha cabelo anelado... mulato. Fiz que entendi, deixando para pesquisar depois.

Contou que Amélia Rosa e Régio da Silva tiveram Malvira, Régio, Duzanita, Iponima e Delfina Rosa, filha de puri, minha avó, que se casou com meu avô materno, José Maciel da Silva, José cabeleira, moreno – puri, nascido em São Geraldo, Minas Gerais, filho de uma cigana, que afirmou ser branca, com um china, que esclareceu ser preto de cabelo bom. Também fiz que entendi.

Do casamento de minha avó com meu avô, nasceu ela, Vivaldina Rosa, e mais Maria de Lourdes, falecida, João Batista, no Paraná, Odete, casada com José Agostinho Otaviano e com cinco filhos: Maria, Afonso, Teresinha, Zequinha e Maria Francisca.

Relembramos os nomes de meus irmãos e irmãs e pronto, guardei o caderno, feliz da vida por acreditar ter ali tudo que precisava. Anos depois, na faculdade, na aula de antropologia, minha professora falava sobre os povos e aí me lembrei das dúvidas que tinha em relação aos termos dados por minha mãe referente aos biótipos de meus familiares. Ao final da aula, em particular, acreditando que tudo seria esclarecido, perguntei. Simples assim. Ledo engano, ela nunca havia ouvido falar nem em negra puri pega no laço, nem em cabo verde, muito menos em china.

Desculpei-me dizendo que deveriam ser termos usados na roça. Saí e tratei de considerar “termos usados na roça” como invenção de minha mãe. Só que volta e meia vinha à cabeça a ideia que não era possível minha mãe ter inventado aquilo. Dali para a frente, em cada evento que eu participava, enquanto militante, quando encontrava pessoas de comunidades tradicionais, levantava informações sem demonstrar interesse pessoal.

Após anos soube que puri era uma etnia indígena extinta há muito tempo. Até que em 2006, na ocupação da Aldeia Maracanã, ainda enquanto militante, perguntei aos que lá estavam se conheciam a etnia Puri, sempre sem demonstrar interesse pessoal. Imagine eles pensarem que uma negona que está ali para colaborar agora iria virar índia? Só que agiram como minha antiga professora de antropologia.

Fui, algumas vezes, na Aldeia, ainda na construção da primeira oca. Acendiam a fogueira à noite, faziam uma roda, cantavam e rezavam. Levávamos comida pronta, mantimentos e material de higiene e limpeza para semana, mas era pouco. Tinham dificuldade com documentos do local, luz, água, alimentação, material para oca, voluntários para dormir lá e de se entenderem entre si. Afastei-me e, em 2007, adoeci.

No final de 2012, vi que estavam adicionando uma etnia indígena ao nome no “facebook” em apoio a aquela ocupação, resolvi aderir também e adotei o “Puri”. Ninguém iria me questionar, já que índios e não índios estavam adotando. Alguns amigos(as) do “face” começaram a me perguntar o que era “Puri”. Quem disse que eu não seria questionada? Comecei a explicar, mas era pouco, tinha que fundamentar mais.

Paralelo a isso, comecei a verificar se aparecia mais alguém com “Puri” no final do nome, até que encontrei uma com Puri depois do nome. Iniciei conversa com ela “in Box”, mandei foto de minha mãe, contei minha história, mas não tive sucesso. Encontrei também Opetahra Sol Reis Puri, fiz o mesmo movimento e ela acreditou em minha história adicionou-me no Grupo Puri do facebook, informou-me sobre Dauá Puri e eu a adotei como minha madrinha, porque ainda tinha impregnado em mim o comadrismo de minha criação.

Um dia, estava no corredor da Secretaria Estadual de Assistência Social, indo para reunião do Conselho Estadual de Direitos Humanos, onde eu era conselheira, e encontro Dauá Puri. Aproximei-me e me identifiquei. Ele me viu, conversamos e, mesmo estando fora dos padrões da literatura, afirmou que eu era Puri. Comecei então a acreditar que não deveria ser invenção de minha mãe, apesar de ele em nada se parecer comigo.

No Grupo Puri, fui convidada para a Troca de Saberes na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. Fiquei animada e receosa em ir, afinal não me conheciam pessoalmente e quando me conhecessem poderiam não me aceitar como parente. Só que quando Dauá me disse que lá iria encontrar puris mais parecidos comigo, resolvi ir. E não deu outra, conheci Nenem Lupin e sua família e vi que estava em casa.

Já um pouco mais segura, em 2014, ancorada por Opetahra Sol Reis Puri, fiz minha autoidentificação na FUNAI, que chamo de minha certidão de nascimento puri. Agora tenho meus ancestrais registrados em um documento, diferente de minha certidão, que só constávamos eu e minha mãe. Agora sou Carmelita Lopes, Náma Puri.

¹ Parte do texto: O LAÇO QUE VIROU NÓ - A CONSTRUÇÃO DO CAMINHO DE VOLTA de Náma Puri (2014)

² Carmelita Lopes é pós-graduada em Especialização em Gerência de Projetos pela FGV, Graduada em Pedagogia e Letras pela FINAM – RJ, Profa aposentada de Língua Portuguesa pela FAETEC e Mestranda Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND) do Museu Nacional – UFRJ. Foi colaboradora na elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), Ex-presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro (CONSEA-Rio), Cofundadora do Movimento de Ressurgência Puri, Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas – CEDIND/RJ. Náma Puri (Rio Puri) é o seu nome adotado na autodeclaração indígena da etnia Puri.

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