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Para entender a língua Pury

  • Foto do escritor: Puri Vivo
    Puri Vivo
  • há 13 horas
  • 3 min de leitura

por Antônio Dutra* - Tindaíuô Kongré Pury

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Nos últimos anos um dos maiores acontecimentos no ambiente do conhecimento sobre a cultura Pury, especialmente no que concerne ao idioma, foi a publicação do léxico, tal qual era utilizado em fins de século XIX e inícios do século XX. A obra concebida por Nhãmãnrrúre Stxutér Kaiá Pury - Felismar Manoel (último falante da Língua Pury região de Guiricema/MG), chamado por nós de Seu Felismar, recupera o conjunto de palavras que ainda estavam presentes na língua na década de 1940-1950, em Guiricema.

A localização precisa no estado de Minas Gerais ajuda em dois aspectos importantes: os termos, pronúncia e sentidos não pretendem ser universais, nem contrariar o uso em outras regiões Pury. Na verdade, funciona muito mais como um testemunho de uma comunidade que se sentia vinculada à tradição central, mas sofria a pressão da sociedade circundante, especialmente quando se popularizavam os meios de comunicação e os mais jovens renunciavam àquela riqueza, de forma inesperada. Felismar produziu, então, o primeiro calepino a ser ensinado a essa juventude e a primeira fixação vocabular mais extensa. Com o conjunto das palavras, a grande preocupação do autor era mostrar como elas intermediavam, alimentavam e adaptavam as transformações para a visão de mundo do Povo Originário.

            Por circunstâncias e dedicação, a Pury e pesquisadora Profa. Me. Carmelita Lopes (Ñama Tekilong Pury) pôde estabelecer o formato definitivo do Falares e Fazeres do Povo Pury – na tradição da Comunidade Rural da Região de Guiricema/MG. O volume foi publicado e abraçado pela pesquisadora Profa. Dra. Tania Conceição Clemente de Souza, do PROFLLIND/Museu Nacional/UFRJ. Um feito. Contudo, eu gostaria de chamar atenção, não das palavras em si, mas da capacidade de, a partir desse conjunto, apreender o eixo subterrâneo da concepção da realidade que esses antigos Pury tinham e que chegaram a Seu Felismar. Por limitação de espaço e brevidade, como um texto de blog deve ter, uso como exemplo, apenas a palavra adivinhar.

Em língua Pury, na modalidade de Guiricema, renípáe (adivinhar). Para seu significado encontramos: Prever através de mecanismos oníricos ou desdobramento de consciência extracorpórea. O primeiro ponto a ser sublinhado “adivinhar” que em português encontra-se no ambiente da revelação daquilo que está oculto, e por mágica, sorte ou cálculo da intenção de alguém, chegamos à reposta correta. Nessa modalidade, adivinhar é saber de antemão, orientar, tomar a melhor direção de acordo com os sonhos. Lugares diametralmente opostos nas duas línguas.

Além disso, percebemos que sonhar produz conhecimento, comunicação. Assim, vemos que o conhecimento oriundo dos sonhos não representava nenhuma realidade esotérica, estranha, mas uma forma de aprendizado ou comunicação aceitável para aqueles Pury em Guiricema, o que de certa forma mostra uma resistência tanto a uma religiosidade controladora europeizante, que em certo sentido “santificava” a estrutura social brasileira e excluía os elementos não-ibéricos, da cultura nacional, e ao mesmo tempo, distanciava-se do estrito racionalismo determinista nascido em fins do século XIX.

Desta maneira, vemos que os sonhos estavam em um lugar muito distinto do que se considerava então. Diversos povos originários possuíam (e possuem) um lugar especial para eles, como por exemplo, os Yanomamis, como sugerem os estudos de antropóloga Hanna Limulja.

O que emerge da palavra renípáe é o dinamismo das conexões em dimensões distintas que chamamos em nossos dias de Real ou a Realidade.

A possibilidade de encontros, recados, idas de Pury, vindas de ancestrais e orientações oníricas mostram que provavelmente o ato de dormir era tomado como uma atividade e não apenas um estado de relaxamento temporário para o dia seguinte ou campo restrito a junguianos e psicanalistas. Em certo sentido, se estivermos certos, dormir era também uma forma de agir no mundo.  Há muito o que se investigar a partir do das palavras que nos legaram os Pury de Guiricema; esse conjunto é um campo aberto a linguistas, antropólogos, etnólogos e historiadores, e por fim, aos Pury contemporâneos.

 

(*) Antônio Dutra é Professor e Doutor em Ciência Política e integra o Movimento de Ressurgência Puri (MRP).


Bibliografia:

LIMULJA, H. O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami. São Paulo: Ubu Editora, 2022.

MANOEL, F (Nhãmanrúri Schuteh Pury). Falares e Fazeres do Povo Pury na Tradição da Comunidade Rural da Região de Guiricema / MG (1957), SANTOS, C.L. (Ñáma Telikóng Pury.) (org.) São Paulo: Editora Literando, 2022.

QUEIROZ, C. Como sonham os povos ameríndios - Estudo etnográfico mostra que os Yanomami entendem atividades oníricas como experiências reais. Revista Pesquisa FAPESP. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/como-sonham-os-povos-amerindios/ consultado em 18 de setembro de 2025.

 

 
 
 

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