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A recusa consciente da frase “venha para nós o vosso reino” no Pai Nosso – Pantxarré - na versão pury

  • Foto do escritor: Puri Vivo
    Puri Vivo
  • 24 de jul.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 25 de jul.

Nhãmãrrúre Stxutér Pury (Felismar Manoel)

(Família Ancestral Kaiá - Guardiões das Raízes)

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Os Padres da Missão (Caraça)* junto aos Pury da região de Guiricema (MG), minha região, especialmente nos períodos em que estes se encontravam agregados à estrutura missionária, utilizavam o texto do caderno de orações. A intenção era catequética: ensinar as orações cristãs e consolidar os valores religiosos do colonizador entre os povos indígenas. No entanto, ao contrário do que muitas vezes se supôs, os pury não receberam esses textos de forma passiva.

Desde cedo, demonstraram julgamento crítico frente aos conteúdos impostos. Um exemplo emblemático dessa postura foi a recusa consciente da frase ã pan xápre ã diékoaé - a nós vem o seu reino (governo)… na oração do Pai Nosso, que fazia parte do Catecismo Pury, pois os pury não desejavam esse tal reino (como o de Portugal que estavam experimentando). O reino representado pelos portugueses se manifestava de forma profundamente opressora: desestruturava famílias, retirava delas as suas autonomias, separava maridos, esposas e filhos nos aldeamentos, e explorava a mão de obra indígena em benefício do projeto colonial. Por que, então, desejar a vinda de um reino que trazia consigo dor, fragmentação e desumanização? que

Nesse contexto, os próprios pury optaram por omitir tal expressão da oração. Recitavam corretamente o restante do texto, aquilo que consideravam útil ou moralmente aceitável, mas suprimiam de forma estratégica o que julgavam inconveniente. Tal gesto de edição revela não apenas resistência, mas também discernimento e inteligência cultural.

Em determinadas situações ou contingências vivenciais, alguns pury tinham que ir à Missa (Mánge Uipangé), frequentar o catecismo (Arizar-txina) e às vezes tendo que confessar (Perembó) com o padre (Oaré-Terengambô). A convivência com os missionários católicos, sobretudo nas paróquias, era tida como estratégica. Através dessa aproximação, os Pury tinham acesso à escola e a outras formas de aprendizado, o que os ajudava a enfrentar as hostilidades impostas pelo povo branco. Como os padres não dominavam bem a língua Pury, não percebiam que os indígenas estavam adaptando os textos à sua maneira, criando, assim, versões orais e espirituais próprias, alinhadas à sua ética e visão de mundo. Por isto o interesse na versão construída conforme a consciência pury.

Vale observar que, enquanto a segunda geração de pury assimilava, em parte, os valores da religião católica e da cultura dos colonizadores, tornando-se, sob certos aspectos, uma população “caipira”, domesticada e útil à hegemonia branca, surgiam também indivíduos que resistiam. Jovens prudentes e destemidos começaram a conservar discretamente a herança étnica Pury, mesmo em meio ao apagamento. Já na terceira geração, tornou-se mais visível o surgimento de um número crescente de jovens desconfiados das intenções dos brancos invasores e da massa popular que a eles se aliava.

Foi nesse cenário que os resultados das estratégias traçadas durante o encontro de lideranças Pury da região, em 1903, começaram a florescer de forma concreta. Essas lideranças passaram a unir forças com membros das primeira, segunda e terceira gerações que ocupavam posições de serviço entre os brancos. Usavam, de maneira prudente, esses espaços “privilegiados” como pontes para a proteção e resgate dos valores culturais e espirituais Pury, valores originários da floresta.

Esse episódio revela uma verdade essencial: os Pury jamais foram ignorantes ou submissos, como tantas vezes foram retratados. A omissão consciente da frase “venha para nós o vosso reino” e a recriação crítica de conteúdos religiosos demonstram resistência, agência e sabedoria. São marcas da verdadeira história Pury, construída com lucidez e coragem diante da tentativa de imposição cultural, espiritual e identitária.

É nesse contexto que surge uma versão do Pai Nosso cristão adaptada aos modos de ser Pury nos falares da minha região, preservando a dignidade e a espiritualidade do povo em meio à dominação, que reproduzo abaixo:

 

Pan Txarré

Pai Nosso (em língua Pury de Guiricema/MG)

Deuá Lamã Nhãmãndú/Dokóra!

Grande Espírito Nhãmãndú/Dokóra!

Pantxarré unhúm okóra txaé.

Pai nosso no céu viver

Tanú diémandjira,

Santificado seja o seu nome,

(omitido - ã pan xápre ã diékoaé…a nós vem o seu reino - governo)

Tiatapã diémopúia

Seja feita a sua vontade,

Kará plêuake utxô, aloú kagrána okóra.

Aqui na terra, como no céu.

Parrín panké ungepompá linaká operára,

Hoje nos dá o alimento de todos os dias,

Tekuá karrón panaréten moiamá,

Perdoa (apazigua) nossas dívidas,

Krupán plêuake pantekuá karrón

Assim como perdoamos

Terrón panké aréten mioamá,

Aqueles que nos devem,

Pantekondé unhún kandé kaiuáne,

Nos guarde de cair(quebrar) nas trapaças,

Makín pantakín unhúm ukandjeriká.

Mas nos livre das maldades e misérias.

Gandeú taperéluá diédaitxé,

Porque de direito é seu tudo,

Tamapú, kansú unhúm monekroión.

A honra, o poder e a glória.

Tekuára-sú! Tekua-sú!

Paz natural (diversas em harmonia)! Paz!

 

 

(*) A Missão (Caraça) teve como aprendiz agregado dos Padres o tio Juka Pury (José Samuel Corrêa). Lá aprendeu Pintura e Desenho, Música (teoria e solfejo, tocar violão e flauta) e Língua Francesa – cerca dos seus onze (11) aos dezessete (17) anos, quando retornou para sua família na localidade de Rio Pombo. Foi encaminhado por mediação do pároco do Rio Pombo, não sei seu nome, mas ele (tio Juka) falava de um certo padre “Boavida”, não sabendo se era apelido ou nome mesmo. Participou do encontro das lideranças pury da nossa região em 1903 (Goianá) e foi formador/ensinador da cultura pury (língua, festividades, símbolos e valores étnicos) nas nossas comunidades de Cruzeiro, Valão, Alto da Serra de Tuiu(i)tinga (Guiricema) e Sapé (Guidoval) até 1951, quando morreu nosso Opê Antár Txina Pury, sendo desarticulado nosso povo e perdemos nosso solo cultivável e nossas moradias.

 

Lembranças de minha aldeia rural / Gemúnae unhúm birruã ambó-goára (gaambó-goára). Cruzeiro, Município de Guiricema, Zona da mata, Estado de Minas Gerais, Brasil - 18/04/1951

 
 
 

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