Marcelo Sant’ Ana Lemos[1]
Recorte de anúncio. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional - Revista Chácaras e Quintaes, n.48, p.432
Os Purí são grandes conhecedores da flora da Mata Atlântica, pois por dezenas de gerações eles se relacionaram com esse ambiente e foram construindo seu conhecimento, sua cultura e vivência nesse território.
Entre os vegetais da floresta que o povo Purí interagia estava o diconroque, que ficou também conhecido como feijão de caboclo, que tem valor nutritivo e gosto comparável ao do feijão preto.
Essas árvores eram encontradas, no século XIX e início do XX, na região da Serra das Flecheiras, no Estado do Rio de Janeiro, um ambiente com ocupação ancestral da etnia Purí. Era comum os Purí acamparem no entorno dessas árvores na época da sua frutificação, entre novembro e janeiro, para coletarem os frutos e cozinharem as sementes de forma semelhante como se cozinha os feijões.
O farmacêutico e químico alemão Theodor Peckolt, que chegou ao Brasil, em 1847, e depois viajou pelas províncias do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais, tendo inclusive morado entre os Botocudos Nacnenuk, no Rio Doce, no fim da década de 1840, chamou a atenção do mundo acadêmico para essa planta.
Ele morou em Cantagalo (RJ) cerca de 17 anos (1851-1868), onde pode se dedicar ao estudo, análise química e descrição de centenas de plantas, sempre contando com o auxílio de indígenas das etnias Purí e Coroado, que viviam na região, ajudando-o na “descoberta científica” de novas espécies da flora, que já eram velhas conhecidas dos povos originários.
Foi assim que ele, com as informações dos indígenas, coletou em São Domingos, no território da Vila de São Fidelis [2], flores, folhas e frutos da diconroque (que acredito ser o nome da planta em Purí) para proceder a sua descrição e realizar a análise química detalhada da planta.
Em 1883, Peckolt fez a descrição científica da diconroque na revista da Associação de Farmacêuticos Austríacos chamada Zeitschrift Allg. Oesterr. Apothekervereines. A espécie recebeu a denominação científica de Sahagunia peckoltii, por Schuman, que vinculou a família das Urticaceas, mas, posteriormente, por conta de revisão botânica promovida pelos cientistas Engler e Prantl ela foi relacionada a família das Moraceas, recebendo o nome de Trophis brasiliensis Peckolt, nome que atualmente também não é aceito pelos botânicos. Mudou depois a denominação científica para Trophis americana L., que virou um dos sinônimos taxonômicos aceitos para a descrição da planta que tem hoje o nome científico de Trophis racemosa (L.) Urban e o nome popular de feijãozinho-rasteiro.
Ocorre que essa planta Trophis racemosa (L.) Urban tem a sua distribuição do México e América Central até o Brasil, sendo que ocorre somente na parte Amazônica do nosso país, mais especificamente no Acre [3]. A sua ocorrência no Rio de Janeiro não está documentada nos bancos de dados botânicos das diversas partes do mundo. Então a pergunta é: a Trophis racemosa é uma planta diferente da diconroque, a planta que Peckolt descreveu ou só a distribuição que está incompleta?
Cremos que não é só a distribuição que diverge, mas o tamanho e outras características, pois a descrição do farmacêutico em relação a diconroque era que: ela chegava até “3 ou 4 metros de altura, tem sua casca lisa, de cor acinzentada com ramos delgados; e as folhas curtamente pencioladas e um tanto rígidas, agudas lanceoladas com 9 a 16 cm de comprimento e 2 a 3 cm, 1-2 cm de largura. Possue flores masculinas em espigas e femininas em capítulos de 7 a 8 mm de diâmetro. Os frutos em número de 6 a 16 dispostos sobre um receptáculo comum, são ovais e do tamanho de um pequeno bago de café. As sementes acham-se envolvidas em uma parte polposa de cor avermelhada e de sabor adocicado.
Floresce nos meses de junho a agosto e nos meses de novembro a janeiro apresenta os frutos maduros.”[4]
Já a Trophis racemosa (L.) Urban atinge até 15 metros de altura, tem a cor da sua casca pardacenta e fruto de baga globosa, avermelhada, 12 mm de comprimento.[5] Nessa rápida comparação entre as descrições da espécie diconroque e da Trophis racemosa (L.) Urban vemos além da divergência na distribuição existe a diferença entre as alturas das árvores e das cores da casca, quanto as polpas que envolvem as sementes a cor é a mesma (avermelhada).
Acreditamos que para tirar essa dúvida se são espécies diferentes ou não, os botânicos devem proceder as buscas e coletas de exemplares da planta em campo, no Noroeste Fluminense. Isso só não ocorrerá se estiverem extintas essas plantas no território fluminense.
Theodor Peckolt e seu filho Gustavo analisaram a composição química do fruto e da semente do feijão de caboclo, portanto, as espécies atuais, que forem por ventura coletadas em campo, podem ser comparados quimicamente com os resultados obtidos pelo pai e o filho. A Revista Chácara e Quintaes, volume 48, de 1933, traz esses resultados da análise química.
A planta indígena ainda era cultivada na década de 1930, pois havia interesse de agricultores em conseguir as sementes para o replantio do feijão de caboclo, como podemos ver no anúncio na revista “Chácaras e quintaes”:
Cremos ser importante o resgate biológico e cultural da diconroque ou feijão de caboclo, que além de ser mais uma opção nutritiva para a mesa dos brasileiros ela também é uma contribuição sobre o conhecimento da Mata Atlântica feita pelos povos originários, em particular uma herança da sabedoria Purí.
Notas:
[2] Hoje cidade de São Fidelis, mas na época vila de São Fidelis. Ela abrangia na década de 1860, um território que hoje corresponde aos seguintes municípios: São Fidelis, Cambuci, Santo Antônio de Pádua, Itaocara, Aperibé, Miracema, Lajes do Muriaé, São José de Ubá, Italva e parte de Itaperuna. São Domingos pode ser um riacho que nasce na Serra das Flecheiras e desemboca no Rio Muriaé.
[4] Chácaras e quintaes, volume 48, página 71, 15.07.1933.
Fontes consultadas:
Hemeroteca da Biblioteca Nacional - Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (RJ), 1875, ed. 4, p.205
Hemeroteca da Biblioteca Nacional - Diário de Notícias (RJ) ano 1933, edição n. 2017, p.5. Ver chácaras e quintais n. 48 1933
Hemeroteca da Biblioteca Nacional - Gazeta Literaria: Publicação Quinzenal (RJ), ano 1884, n. 13, p. 10.
Hemeroteca da Biblioteca Nacional - Jornal – O Campo (RJ) ano 1930 – edição 0001, p. 64
Hemeroteca da Biblioteca Nacional - Jornal do Agricultor: Princípios práticos de Economia Rural (RJ), 1894, ed.28, p.37
Hemeroteca da Biblioteca Nacional - Jornal do Agricultor: Principais práticas de Economia Rural (RJ): 1880, ed.3, p.154.
Hemeroteca da Biblioteca Nacional – Revista Chácaras e quintais, volume 48, página 71, 15.07.1933
Hemeroteca da Biblioteca Nacional - A Nação folha política comercial e literária. 1 de março de 1873, ano II, Rio de Janeiro, número 28, página 2
Foto do feijão. Disponível em:
Flore pittoresque et médicale des Antilles (Pl. 19) (6004847359).jpg
Feijãozinho-rasteiro
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