top of page
  • Foto do escritorPuri Vivo

As expertises das mães indígenas de Valença (RJ)

por Sonia Ortiz


Valença nasceu no ventre das mães indígenas. Abril indígena nos lembra que a memória indígena continua invisibilizada, até nos murais dos artistas.

Contam os descendentes delas que as mulheres mesmo tomadas como esposa pelos sitiantes e sendo mãe dos filhos destes, viviam tristes, com arengê, o banzo puri, olhando para a mata, na esperança de verem um parente. Proibidas de falar a própria língua, iam passando a cultura para seus filhos, nos fazeres, nos hábitos alimentares, nas tessituras e artes de cerâmica. E os primeiros caipiras cresceram ouvindo sobre Deus Dokora, Tupá e a Uka, um espírito da floresta, que os protegia e vigiava para não fazerem coisas erradas. Ainda hoje se fala no curupira e outros mitos da floresta como histórias vividas.

As mulheres já não tinham a caça a que estavam acostumadas a assar: capivara, gambá, lagartos etc. como faziam na mata. Os peixes assados na folha de bananeira eram a pacumã, traíra, lambari, piau, mussum, peixe cobra e outros. Elas cozinhavam na brasa o milho e outros grãos, mandioca, batatas, abóboras, castanha etc. como faziam na sua aldeia. Colhiam o mel e grãos da mata. Trançavam a taboa para fazer esteiras e cestos de carregar os filhos, frutos e outros utensílios.

Colocavam a guaxima amolecendo de molho na água até que ficassem apenas as fibras resistentes. Desfiavam-nas e teciam suas redes e bolsas com agulhas rústicas de osso de peixe ou madeira. A juta, o tucum e a embaúba também eram muito usadas para tecer. Cultivavam a gima, o algodão originário das Américas, e com ela trançavam fio para tecer, o kaleniu-auéna, e faziam cordas para amarrar, as auéne. Assim, trançavam também amorosamente a cultura caipira ou cabocla desses vales e serros amalgamando as culturas indígenas e européias.

Alguns fazendeiros legitimaram a união com as indígenas, elas foram batizadas e assumiram nomes cristãos. A guerra dos indígenas com os portugueses durou muitos anos, até que o cacique Bocomã reunisse outros caciques e propusessem um fim à guerra. Por um acordo com D. João VI, os indígenas de diferentes etnias do vale seriam os proprietário das terras, no que viria a ser o aldeamento, a semente de Valença.

Outros casamentos interétnicos aconteceram quando os europeus começaram a visitar os aldeados e cativaram algumas indígenas. Passado o tempo, quando as primeiras mulheres brancas vieram esposar alguns fazendeiros, muitos dos filhos das indígenas foram servindo a eles como peões ou lavradores e suas mães foram socando a carne salgada e alguns grãos no pilão e apreendendo a tecer nos teares com o algodão. A paçoca de amendoim feita no pilão, primeiro foi salgada e depois ganhou farinha e mel e ficou um doce servido nas gamelas de madeira. As cerâmicas foram úteis, pois nem sempre o ferro estava disponível para fazer panelas. Mas essa é outra longa história...

Embora D. João VI tenha doado essas terras para os indígenas e seus descendentes, após o padre Leal batizar os indígenas e trocar o nome de mata deles para cristãos, aconteceu uma traição. Informaram a D. Pedro II que não havia mais indígenas, apenas cristãos, então as terras indígenas foram doadas a novos sitiantes europeus. Portanto, há 200 anos, os indígenas que foram chamados pejorativamente de caboclo tornaram-se escravos e semi-escravos em suas próprias terras. Nas fazendas e sítios os homens eram explorados na lavoura e no traquejo dos animais, enquanto as mulheres trabalhavam na casa grande, tecendo roupas para os fazendeiros com fios de algodão. Para elas sobravam as fibras mais rudes de juta e guaxima, como as que ainda hoje se faz para ensacar batatas.

Produziam suas próprias vestimentas, doces de frutos da terra como de abóbora, de jiló e muitos outros. Assim, foi surgindo a goiabada com queijo, o doce de leite e outras riquezas da terra. Mas a mulher indígena, que usou todos os saberes Puri para produzir alimento, remédios e artefatos que moldaram os hábitos formando a cultura valenciana, foi colocada numa classe inferior ao longo do tempo: a de servidores semiescravos. Muitas doceiras, parteiras e benzedeiras, descendentes de Puri ou Coroado, ainda vivem da tradição Puri.

A mãe Puri tinha toda a terra que a gerou, a uchô, depois viveu na terra que lhes deu a subsistência até que lhes foi tomada, a ope-uchô, a terra que nutre. Os artefatos ancestrais ainda são encontrados nas feiras e na loja Dapaia. As mães Puri ou Coroado estão em Valença. Inhã há leká Valença, a ope-uchô.


Desenho de Charles Motte a partir de Jean-Baptiste Debret. Sauvages civilisés soldats indiens de la province de la Coritiba, ramenant des sauvages prisonnières, Biblioteca Nacional (Brasil), 1834.


274 visualizações4 comentários

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page