Peço licença para me apresentar a partir de meus antepassados maternos numa reverência a eles: sou trineta de Custódia, negra Puri, capturada, violentada, ‘pega no laço’ , e colocada em cativeiro na Serra da Onça, em Guidoval, Minas Gerais; sou bisneta de Rosa, negra Puri, e Régio, de Cabo Verde, também esses mantidos em cativeiro na Serra da Onça; sou neta de Delfina, empardecida, de Guidoval, Minas Gerais, e José Cabeleira, empardecido, de São Geraldo, Minas Gerais, filho de cigana com negro china; sendo eles pais de Vivaldina, empardecida, também nascida em Guidoval, que pariu a mim, Náma, autodeclarada Puri, nascida em Cataguases, Minas Gerais.
Falar da visão geral de mundo de um povo originário me remete ao crânio de Luzia, o mais antigo fóssil encontrado no Brasil e nas Américas, com cerca de 12.500 a 13.000 mil anos , descoberto em 1975 na Lapa Vermelha, uma gruta da região de Lagoa Santa, município de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais. São milhares de anos de observação, experimentação e aplicação dos saberes, mesmo havendo um distanciamento temporal e um esvaziamento da memória de povos originários do Brasil até os dias de hoje.
Se considerarmos o quantitativo desses povos e línguas que, mesmo invisibilizados, branqueados, empardecidos e calados, foram transmitindo seus modos, costumes e conhecimentos em suas línguas, de forma velada, pela oralidade no interior da família, constataremos que ainda há muito que se resgatar e aprender.
Trazendo para os dias atuais, o Censo demográfico de 2010 (IBGE, 2010) registrou 305 etnias e 274 línguas faladas, totalizando 896.900 indígenas dentre aldeados e em contexto urbano. Então, nossa contribuição, enquanto Povo Puri, é parte de um imenso universo de saberes, em parte omitido por uns parentes Puri por ainda guardarem a ‘Cultura do Silêncio’: “Nesse sentido, é imprescindível para o invasor despojar de significado a cultura invadida, fraturar suas características e inclusive enchê-la de subprodutos da cultura invasora” (FREIRE, 1992. p. 42). A subordinação e o domínio do
colonizador também contribuíram com a perda da identidade da figura nativa e o esvaziamento de suas raízes. Transformaram o Povo Originário Puri em personagem mítico e aos seus descendentes deram a identidade de mameluco, caboclo ou cafuzo até serem empardecidos.
E, o que nos foi transmitido pelos nossos ancestrais sobre a Terra, seja pelas transcrições dos viajantes, seja pela memória afetiva de parentes mais velhos, que viveram em território Puri, ou ainda pelos mais novos que trouxeram para nós histórias contadas pelos seus mais velhos relacionadas à visão geral de mundo do Povo Puri, nos dá conta de ser, a Terra, solo sagrado, um grande lar, até onde os olhos alcancem, onde as pessoas, os animais e as plantas são todos parentes interligados.
Esse solo sagrado por excelência tem ligação direta, em cada território habitado, com os mundos - espiritual, ancestral e natural - sem limitá-los, priorizando viver e conviver, sem relação de domínio, mando ou exploração dos recursos naturais. Sendo a Terra, enquanto natureza, a Mãe geradora da ordem, o espaço de moradia e de convivência com toda a criação, visto tudo no mundo natural ser possuidor de vida, de energia.
Cabe ressaltar que, o território referido, não é entendido em limites físicos, porque a Terra não tem esses limites. Não existe a noção de domínio de espaço. Não há fronteiras embandeiradas como no mundo rayon - não indígena. “O referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição.” (DESCOLA, 1986, p. 120). Nesse sentido, na visão geral de mundo do Povo Puri, o território é constituído e delimitado socialmente, entre uma família e outra, entre uma comunidade e outra.
A ligação entre os mundos espiritual, natural e ancestral nos territórios se dá a partir dos anciãos dos territórios próximos. Os anciãos, místicos guardiões dos mistérios, das leis da natureza e observadores do mundo natural, possuíam sabedoria para observar, interpretar e escutar os animais, a natureza, a terra, para aprenderem e só então atuarem.
Reuniam-se em grutas, onde se isolavam durante dias para se conectarem com o mundo espiritual, assistidos pelos ancestrais através da meditação. Observavam o céu, os ciclos da lua e as constelações. Previam fenômenos naturais, período das enchentes e planejavam ações voltadas para o modo de vida, da cura, da sazonalidade das plantações, do plantio, das colheitas, dos limites do rio, da pesca e navegação, da caça – onde caçar - e em que período cada ação deveria ser feita.
A partir desse contexto, o que era executado na Terra passava a ser marcado por rituais, dentro de uma hierarquia de poder enquanto competência, seja no rezo, na dança, na cura, ou na liderança e sempre respeitando as energias da natureza. Aquela ligação daqueles mundos somada à observação e à experimentação acumulada durante séculos deu origem aos saberes tradicionais ligados à sua particular forma de viver e organizar-se. Assim sendo, a astronomia Puri, a botânica Puri, a matemática Puri e a medicina Puri são exemplos de conhecimentos tradicionais que foram sendo estruturados com base suficiente para manter-se e estabelecer-se à margem de serem desprovidos de recursos metodológicos cientificamente definidos.
Nesse território constituído foi se formando a cultura e a forma de olhar, como a confiança de haver encantados, pessoas que viravam animais, os ancestrais conhecidos e desconhecidos, os mortos recentes - que ainda estão no território por não terem feito a total separação desse mundo e que, por isso, eram enterrados longe da comunidade - dentre tantas coisas mais.
Além da visão geral de mundo comum a todos os territórios, existe a especificidade de cada um e seus signos, como exemplo, as árvores sagradas, as sementes sagradas, os rituais com dança como a Dança com Porrete, a lança, em treinamento e comemoração de lutas com os inimigos, povos rivais, a Dança com Arco e Flecha, em treinamento e comemoração dos arqueiros de lutas com inimigos, e a Dança de Trança de Cordas, dança de preparação do jovem guerreiro aos 10 anos que adquiria rapidez, agilidade, destreza e capacidade para embrenhar nas matas. Essas danças se transformaram em três atos da Dança de Caboclo.
Johan Moritz Rugendas (s.d.) em sua obra “Viagem Pitoresca através do Brasil”, descreve uma ‘Dança dos Puri’, num ritual de celebração. Karl Friedich von Martius em obra escrita com Johann Baptist von Spix, “Viagem pelo Brasil: 1817-1820” (1981), registra outra Dança dos Puri que, segundo a informação que recebeu de um negro que vivera entre os Puri, fazia referência a um lamento por terem caído de uma árvore quando tentavam colher uma flor: "a explicação que nos ocorria, diante deste quadro melancólico, era do paraíso perdido" (SPIX & MARTIUS, 1981). Ainda, havia várias as comemorações que faziam durante o ano, ligadas a Terra e ao que ela oferecia.
Em todos os territórios, há ainda uma relação com a natureza e as energias daquele local e, de igual modo, com os ancestrais e os espíritos que ali habitam. Essa relação é bem marcada em ligações feitas a determinadas formações rochosas, muitas conhecidas pelos não indígenas.
Já como uma ação resultante da observação e experimentação dos anciãos ancestrais, temos o Sistema de Marcação do Tempo, utilizado pelos Puri da região de Cruzeiro, distrito de Tuiuitinga, no município de Guiricema, região da Zona da Mata Mineira, baseado na observação dos ciclos da lua. Havia também uma marcação solar para marcação do tempo diário, a fase clara, dia propriamente dito, e fase escura, a noite. Observar e analisar a natureza era uma tradição para orientá-los a se prevenirem de tempestades e preverem situações favoráveis à vida da comunidade, o trato e o respeito com a terra, o uso das ervas na cura e rituais com cantos e danças.
Há ainda coisas do Puri que muitos chamam de coisas ‘duzantigos’, que extrapolaram os limites das tradições da etnia. Passaram a compor os hábitos e costumes do cotidiano comum e perduram até os dias de hoje, nos permitindo montar o mosaico da história ancestral Puri e recuperar o uso da sabedoria tradicional, a cultura, a língua, a natureza do canto e da dança, as práticas e as técnicas do campo.
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Referências
DESCOLA, P. La nature domestique: symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Maison des Sciences de L’Homme, 1986.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo. Editora Paz e Terra, 1992.
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil.São Paulo: Círculo do Livro. s.d.
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil: 18171820. 3v. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1981
Carmelita Lopes é pós-graduada em Especialização em Gerência de Projetos pela FGV, Graduada em Pedagogia e Letras pela FINAM – RJ, Profa aposentada de Língua Portuguesa pela FAETEC e Mestranda Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND) do Museu Nacional – UFRJ. Foi colaboradora na elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), Ex-presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro (CONSEA-Rio), Cofundadora do Movimento de Ressurgência Puri, Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas – CEDIND/RJ. Náma Puri (Rio Puri) é o seu nome adotado na autodeclaração indígena da etnia Puri.
bom ver o relato do proprio povo schuteh
Schuteh om ver nossa historia contada pelas ozes do proprio povo, os relatos acendem a memoria
Excelente texto! Fala de forma simples sobre a visão de mundo do nosso povo, compartilhada com a de tantos povos irmãos. Vale ler a versão completa! Gratidão.