Quero lhes contar uma história do meu povo, mas antes de contar esta história, vou lhes contar a história de como esta história veio a mim: uma noite, em meio a muitas lágrimas, eu escrevi um texto sobre as minhas avós, no qual falava sobre a violência sexual sofrida por elas e por milhares de mulheres indígenas na época da ‘colonização’ do Brasil. Como suponho ser do conhecimento da maioria das pessoas, existem inumeráveis relatos de estupros praticados contra mulheres e meninas indígenas durante o período ‘colonial’, as quais são mascaradas com expressões tais como ‘pega no laço’, ‘pega a dente de cachorro’, ‘acuada de cachorro’. A considerar a quantidade de pessoas que relatam ter entre seus ancestrais uma avó ‘pega no laço’, podemos concluir que o Brasil é nascido do estupro sistemático de milhares de mulheres indígenas.
A história de meu povo é marcada por esta violência, e essas marcas se refletem de forma indelével na aparência dos Puri de hoje, inclusive. Acredito que isto nos faz ter uma consciência mais aguda do que somos, e do preço imenso que precisou ser pago para que hoje sejamos quem somos.
E assim, enquanto eu escrevia e chorava aquele texto, eu senti-as perto de mim, sussurrando palavras não apenas de dor, mas de conforto. Enquanto as ouvia, eu olhava para um colar feito de uma semente que, em nossa língua, se chama Phyôinhã, (lágrima-mãe), colar este que foi presente de uma parenta, a Tuschahi, que as colheu em um local considerado sagrado para meu povo.
E foi, portanto assim, neste momento sagrado que elas me contaram como foi que meu povo foi presenteado com esta semente. Eis, portanto, a história:
A Phyôinhã, lágrima-mãe, também conhecida como ‘capim rosário’ ‘lágrima de nossa senhora’, ou ‘capim conta’nasceu do choro de uma mulher fugitiva à beira d’água, uma mulher que fugia da dor de ter visto seu povo ser morto, de ter sido tirada de junto de todos os que amava, da dor do estupro, da escravidão, de não poder falar mais sua língua, de ter de negar suas crenças e tudo o que ela era, de ter de guardar dentro de si todo um mundo para não permitir que ele desaparecesse... de ter de esperar mais de uma geração para que os filhos de seus filhos pudessem de novo falar abertamente sobre quem eram, quem são, quem nunca deixarão de ser: Puri!
Essa mulher chorou... chorou e chorou tanto que suas lágrimas se misturaram ao rio. Uma mulher que quis ser rio, e rio se fez, para se lavar de tudo... Mas ela não se acabou, porque o choro que ela tinha chorado, e que era pesado e grande se transformou em pedrinhas que verteram de seus olhos, e delas nasceu algo.
As pedrinhas que caíram dos olhos dela tinham o feitio das pérolas na aparência e na natureza: eram lisas como se fossem polidas; Eram feitas da mágoa pesada, e já nasciam furadas. Elas caíram sobre a terra úmida da beira d’água e dali cresceram em hastes finas. Caule e folhas verde claro, que balançavam no vento fazendo um som suave de chuva mansa. E, em meio ao verdor dos caules, foram surgindo as continhas cor de leite e de areia. A mulher feita rio as viu nascer, e soube que eram o fruto de suas lágrimas, e soube também que elas seriam encontradas, e que, dentro delas, estaria a sua história, tanto a dor, quanto o triunfo do renascer.
Quem as encontrou aprendeu a usá-las e delas são feitas muitas coisas. Quem as têm ainda hoje se lembra, e sabe que elas vieram dos olhos de nossa Mãe, e que por isso elas são especiais e através delas podemos vê-la e ouvir quando ela chora, canta ou ri.
Ela é furada, e através desses furos passam os fios de nossa existência e de nossos enfeites. Quando elas vibram em nossas Gangerinas (maracás), ouvimos as vozes dEla, e nos unimos à sua voz; nesses momentos sagrados, sentimos essas avós junto de nós, não mais em dor, mas agora em canto vivo que nos faz sentir de novo que estamos sim, vivos, e assim seguiremos.
Esse é uma ínfima parte do imenso legado que foi guardado por elas, e transmitido, quando finalmente pudemos ouvir. Nos pertence como memória, para que nos lembremos da dor e das lágrimas, mas também para que nos recordemos da vida, de quem somos, e daquilo não nos demoverão de ser jamais…
Por elas, em honra delas, convém lutar, e se lembrar, porque precisamos ser memória. Precisamos falar, mesmo sobre a dor, para que isto não se repita.
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Nota da Autora: a semente Phyôinhã, popularmente conhecida como ‘lágrima de Nossa Senhora’, ‘Capim Rosário’, ou ‘capim-conta’ (Coix lacryma-jobi) é uma planta tropical perene que costuma crescer junto a solos alagados e é amplamente utilizado na cultura indígena na confecção de adornos. Sua utilização é bastante facilitada por possuir a peculiaridade de já ser naturalmente furado. Entre os mais velhos Puri das regiões de Atalaia, Itaberinha de Matena e Guiricema – MG, existe a referência de seu uso medicinal como tratamento para infecções do trato urinário.
Raial Orutu Puri é indígena do povo Puri e Antropóloga. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com graduação em Direito pelo Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro Oeste, e especialização em Direito Internacional e Comex pela Universidade Positivo - UNICENP. Trabalha desde 2015 como Assessora técnica voluntária na área Jurídica e Antropológica da Federação do Povo Huni Kui do Acre - FEPHAC, e atualmente exerce a função de Antropóloga no Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Juruá - DSEI-ARJ, no Acre. Sua pesquisa de Doutorado teve como foco a Federação Huni Kui, enquanto uma iniciativa eminentemente indígena de busca de autonomia perante o Estado Brasileiro, através do fortalecimento de sua organização representativa e da implementação de seu Protocolo Comunitário. Tem experiência nas áreas de Antropologia, Educação e Direito, com ênfase na Antropologia da Infância, Direitos da Criança e do Adolescente, ações de cunho educativo e inclusivo no espaço museológico, direito internacional e direitos humanos.
matou boase de Raial construção de texto matou koiah
Texto incrível, tsatê Raial! Tocante e inspirador.