Vanessa Txori Miri Pury
Dia 19 de abril foi a data escolhida no calendário gregoriano para celebrar os povos que viviam no território chamado Brasil em perfeita harmonia com a mãe terra, em conexão com o criador e as criaturas, antes da invasão e expropriação feita em nome da coroa Portuguesa e de um Deus que serve aos interesses dos homens brancos.
E, hoje, venho falar um pouquinho do meu povo, povo que para o governo deixou de existir, porque na mentalidade do invasor suas mentiras sempre se tornam verdade depois de muito afirmarem, e sim, muitos de nós adormeceram dentro desse sistema corrupto, eles agem como se possível fosse emudecer nossos espíritos ancestrais e diluir o sangue que corre em nossas veias depois de uma canetada!
O povo Pury teve sua existência quase totalmente dizimada, nossos costumes e cultura suprimidos, nosso canto e nossa língua silenciados, nosso território invadido, mas nossos espíritos voam livres como os pássaros.... Nossa pele vermelha era exótica demais e nossos corpos livres demais para existir impunemente, agora a fizeram parda como o papel então faremos de nossa pele escrituras e vamos retirar deles a caneta para reescrever a nossa história porque ela continua em cada um de nós que celebra nossas origens.
Meu povo foi cooptado inicialmente para a colheita exploratória da poaia (Ipecuacanha), erva medicinal poderosa que também não teve sua importância respeitada, hoje figura a lista vermelha da flora do Brasil como planta vulnerável a extinção. Os primeiros Pury daquela região viviam as margens do Rio Muriaé, palavra originada da nossa língua podendo ter raiz em duas possíveis palavras Meru-aé (mosquito diferente e mau) e ou Meruim-hu (rio dos mosquitos) o Vale do Muriaé era uma região de mata densa e fechada naturalmente cheia de mosquitos que compunham o ecossistema local.
Os Pury residiam em cavernas e em n´guaras(casas) construídas nos altos dos morros para não serem importunados pelos mosquitos, eram caçadores coletores, e todo o seu sustento saia daquelas matas. Com a chegada dos portugueses àquela terra trataram de desmatar e incendiar o local para que pudessem fazer seus assentamentos de concreto, imposições e medo, começa aí o martírio de um povo que vivia livre, que tinha a floresta como casa e a natureza como parte de si.
Os indígenas foram sendo confinados em aldeamentos, explorados em campos de café, as mulheres exploradas como empregadas domésticas e ou escravas sexuais, sua espiritualidade suprimida pelo Deus criado pelos homens brancos, e nossas vozes emudecendo... Nossos corpos eram cobertos dos tecidos mais grosseiros, roupas feitas de saco de batata conta minha mãe, embora trabalhassem sol a sol para seus “descobridores salvadores” e rezassem a cartilha da igreja a vida era sempre dura, e o alimento que a terra e a natureza lhes davam não chegava mais nos seus coités com facilidade, a mata onde caçavam agora tinha dono, o Rio onde se banhavam também. Suas rezas que sempre lhes trouxeram proteção agora era heresia, coisa do Demônio, hoje seu eu sei bem, o Demônio aportou em pindorama num navio e alastrou sua ganância exploratória por todo o território que hoje chamamos de Brasil.
Quando criança lembro da minha vó Bastiana despelando amendoins numa peneira de palha, consigo até sentir o cheirinho, foi através dela que cresci tendo orgulho de me dizer Pury, ela tinha muito orgulho de dizer isso pra nós, e tinha mágoa ao contar que sua mãe foi pega no laço, na minha mente infantil era algo romântico, mas não, nossa história real foi hedionda, muitos homens foram assassinados lutando contra os invasores, mulheres eram laçadas como gado e obrigadas a viver em cativeiros literais ou psicológicos dentro dos aldeamentos, às vezes usadas como moeda de troca por suas famílias àquele ponto famélicas dentro da sociedade imposta pelos portugueses.
Lembro do meu pai assobiar todos os cantos de passarinhos, sabia chamar cada um, a tradição oral permaneceu nele, mas a arte de confeccionar os apitos criados pelos nossos ancestrais se perdeu nas mãos dos brancos da região, o Puri ensinou prum Branco como se fazia, o indígena não podia mais se dedicar aos seus costumes ancestrais, tinha agora que trabalhar pra gerar riquezas prum governo usurpador...
A igreja imputou sentimentos de vergonha e não aceitação, a geração das nossas avós já estava condicionada a renegar nossas origens, a ter vergonha da época em que seus corpos nus viviam livres na floresta em perfeita comunhão com a Sagrada Mãe Terra. Nós hoje resistimos porque mulheres como minha bisavó seguiu fazendo suas rezas, seus unguentos e suas encantarias escondendo seus saberes e benzimentos debaixo da batina de santos católicos, em algum grau suas crenças foram modificadas, mas a essência de seus saberes ancestrais estava sempre acesa no tição do seu fogão a lenha e no bailar das danças de caboclo.
Aproveitando que ainda não estamos distantes do 19 de abril, quero convidar a todos a fazerem uma imersão ao passado do nosso país, e fazer cada um pensar na importância de estarmos vivos nesta época em que o planeta passa por tantas mudanças e finalizações de ciclos, o ser humano cada vez mais se vê fragilizado perante a natureza que ele tanto explora, se vê impotente perante os mecanismos de defesa biológicos gerados por uma natureza cansada de ser massacrada.
A terra é nossa mãe, e nossa mãe está cobrando o genocídio de milhões de indígenas em terra brasileira, o modo de vida que o branco quer impor ao que resta dos povos indígenas vai trazer cada vez mais degradação ao nosso ecossistema, e um dia a humanidade poderá pagar muito caro por suas escolhas.
Obrigada pelas reflexões. Tenho vergonha alheia por esse Estado ursupador e por tantos feitos ruins levados por uma ganância do mau. Minha alma chora e sente a dor dos povos.