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O racismo estrutural e os indígenas

Sonia Ortiz

É na cultura que as mais diversas manifestações de tradições, artes, linguagens e tecnologias revelam um povo.

O processo “civilizatório” causou a exclusão dos povos originários em contexto urbano e rural. Precisamos refletir sobre isso. Mesmo com a lei 11645/2008 das Diretrizes e Bases da Educação[1], os professores não estão preparados para revelar a história dos indígenas. Uma cartografia indígena se faz necessária. Políticas públicas como bolsa família, de moradia, de Educação e saúde dependem das declarações no censo do IBGE. Sem autodeclaração não teremos direitos garantidos.

Citemos algumas situações para uma reflexão inicial.

Numa roda de conversa, uma pessoa me disse: - O índio não gosta de trabalhar... É vagabundo, só vejo as índias fazendo tapioca e os índios deitados na rede... Aprendi isso na escola... Seria alusão aos desenhos de Rugendas e Debret? Memória coletiva ou racismo institucional?

Uma índio-descendente me disse: - Minha bisavó dizia que foi pega a laço, mas acho que isso é folclore. Rugendas registrou indígenas aprisionadas pelos europeus, amarradas umas nas outras por corda. O racismo estrutural instalado a levou a negar sua condição de índio-descendente.

Na FLIVA em 2015, um menino chegou à barraca indígena e nos disse: - Eu fazia brincos e colares como esses que os indígenas trouxeram. Eu ganhava um dinheirinho, mas o pastor me proibiu de fazer isso dizendo que era coisa do diabo. Houve aí um preconceito com a cultura indígena e uma imposição religiosa.

Numa fila para atendimento na farmácia, uma moça “morena” comprava remédios, quando uma senhora “loira” chegou e começou a falar alto para a atendente: - Você vai ficar atendendo essa moça a vida toda? Estou aguardando! A cliente morena virou pra ela e disse: - A Senhora está destratando a funcionária porque ela está me atendendo? Isso é assédio moral, racismo estrutural com a atendente e a cliente não brancas.

Na década de 50, crianças indígenas tiveram a ficha de inscrição escolar carimbada pelas freiras: negro da terra. Na minha escola primária em Santa Cruz, zona rural do RJ, vi um pai branco levar sua filha “morena” para se matricular. Ao preencher a raça, a professora disse: - Parda! O pai pôs o dedo na lacuna e disse: - Branca. Ele sabia do racismo estrutural que sua filha poderia passar... Em Valença, para invisibilizá-los, os indígenas eram chamados de caboclos. Racismo institucional levou muitos a sofrer racismo estrutural.

Um médico de sobrenome alemão contou-me rindo que seu avô atirava nos indígenas na mata quando passava de trem. Paralisei ao ouvir isso de um racista, apesar de todo o conhecimento que eu tinha para enfrentá-lo. Veio-me a clara noção da brutalidade que os indígenas sofreram e o quanto temos que combater isso revelando a verdadeira história desses imigrantes.

Meu cartão de visita, quando me mudei para Valença, foi observar um trote de uma Faculdade em que os calouros estavam sendo obrigados a desfilar pela cidade amarrados como naquela gravura de Debret, apenas de cuecas rasgadas e deixando de fora as partes íntimas, humilhados e sujos de esterco e lama. O que dizer? As instituições ainda reproduzem o modelo escravocrata?

Agora entendo por que o verdureiro quase acobreado e com olhos indígenas se diz negro. Seu avô era branco de olhos azuis, sua avó índia, seu pai negro. Sempre trabalhou na lavoura, mas embora sua cultura de agricultor seja indígena, sua cor o leva a se identificar como negro. O mesmo acontece com a passadeira de olhos verdes, pele acobreada e cabelos cacheados; ela não se reconhece índia. Apagaram a identidade indígena deles.

Vi duas senhoras índio-descendentes se lamentarem porque não foram aceitas no centro espírita pois só recebem “caboclo” e conversam com eles na língua Purí, não recebem entidade “preto velho”. Há episódios em que contataram com os “encantados” na plateia enquanto assistiam palestras com o tema indígena. Parece até que os “encantados” estão reivindicando memória e reconhecimento diante desse apagamento.

Uma volta no tempo nos reporta à pré-história, aos povos da tradição UNA. Como eram caçadores e coletores, ocuparam todas as Minas Gerais, parte de S. Paulo e Espírito Santo, chegando até a baixada fluminense. Nessa dispersão pela zona da mata e pelos vales dos rios Paraíba e Doce, esses povos foram se diferenciando pela cultura, por seus artefatos, pelas tessituras e pela língua. O povo Purí e outros transitavam por estas terras; caçavam, plantavam e guerreavam com os de outras famílias linguísticas como os Botocudo. Tinham danças ora em filas, ora em círculo e cantos diferentes que expressavam sua alegria, tristeza e vitória nas lutas contra adversários.

O conhecimento holístico, que trazia um cuidado com o ambiente, o respeito com a natureza e os animais, levou-os a um entendimento das propriedades das ervas, principal característica desses povos que tinham cosmologia ligada às forças da natureza e aos astros.

Quando os europeus entraram em contato com eles, aprenderam como sobreviver nessa terra e por um tempo foram parceiros; fizeram escambo, observaram e registraram sobre a cultura deles. Até que resolveram escravizá-los para o cultivo da cana e do café, e para o garimpo do ouro nas Minas Gerais. Muitos Purí levados para lá morreram por excesso de trabalho e por doenças transmitidas pelos brancos.

Por muitos anos os sobreviventes permaneceram escondidos nessas terras e muitas vezes precisaram disputar territórios com Botocudos e outras etnias. Revoltados com a escravidão, os indígenas que já haviam fugido do litoral para esses vales passaram a guerrear contra os europeus, bandeirantes que buscavam escravos e sitiantes que ganharam terras de D. João VI.

Os indígenas Purí, que tinham calendário solar e lunar, além de ser o único povo originário no Brasil que tinha artefato para contagem e um sistema de base 5, tiveram sua cultura anulada. Mesmo buscando o apoio de D. Pedro II, para que suas terras não fossem invadidas, tiveram suas terras usurpadas, ficaram escravizados e alguns foram obrigados a casar com negros para gerar escravos fortes.

As indígenas eram abusadas. Faziam trabalhos domésticos e seus filhos tornaram-se peões, agricultores ou estudantes internos. Muitos convivendo com os filhos oficiais de casamentos com europeus, tornaram-se revoltados ou entristecidos, serviçais nos sítios e fazendas, sem direito à terra e à educação libertadora. Ainda hoje, a maioria da população tem as duas matrizes, a negra e a indígena. Muitos ainda trabalham sem carteira assinada e sem direitos mínimos....

Há claramente racismo estrutural. Não há equidade de direitos. Espero que as faculdades façam ressurgir essa memória de conscientização da ancestralidade do povo. Se houver terras devolutas, que sejam direcionadas aos povos originários para que recuperem o meio ambiente e produzam agricultura familiar e orgânica. Como seria se os europeus tivessem vindo somar com o conhecimento indígena?

O Movimento de Ressurgência Purí (MRP), constituído por autodeclarados do povo originário Purí, busca na autorreferência a formação capaz de levá-los ao sentido interno e externo de ser Purí na atualidade. Um resgate da língua e da cultura Purí tem sido feito trazendo artefatos, cantos, danças, etnomatemática, etnomedicina, Etnoastronomia e tradições.

O resgate da autoestima é fundamental para que as doenças psíquicas cessem nessa cidade e os suicídios não ocorram mais. Políticas públicas precisam trazer ações jurídicas e econômicas para que haja melhoria social desses povos originários. Resgatar e valorizar as manifestações culturais como as folias de Reis, o calango, e o forró pé-de-serra com fortes raízes afro e indígena nos festejos da cidade ajudaria a incluir os índio-descendentes. Por fim, é preciso que haja representação indígena nos espaços políticos e democráticos.

[1] A Lei11645 /2008 torna obrigatório o estudo de história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores.

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