Antônio Dutra - Tindaíuô Kongré Pury
Les cabanes des Puris. Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied.
séc. XIX (original 1822). água forte, colorida a mão.
Coleção Brasiliana. Weimar (Alemanha).
A chegada até nós de diferentes listas de vocabulário de língua Pury ainda que extremamente preciosos, podem dar margem a confusões. Um bom exemplo é a palavra “casa” que nas listas que conhecemos, podem ser tanto goára quanto koára.
À primeira vista, trata-se de uma pequena variação de pronúncia. Mas... segundo Felismar Manoel, Nhãmãnrrúre Stxutér Kaiá Pury há uma diferença de conceito: Goára é a casa da família, a sede do lar. Enquanto koára seria um abrigo rude de uma água para proteger de forte sol ou chuva, com seus caibros amarrados a certa altura de um arbusto e suas pontas apoiando no chão, coberto de folhas. Por isso que foram usados pelas lavadeiras de roupas para deixar as roupas ensaboadas tomar sol estendidas sobre elas.
Para Seu Felismar a palavra coarar poderia bem derivar dessa experiência pury "coarar a roupa" em razão de ser sobre a koára. Possibilidade há... aliás o presente apenas recebe a sombra daquilo que existiu... No aldeamento Pury da região de Cruzeiro, distrito de Tuiuitinga, no município de Guiricema, região da Zona da Mata Mineira, até o século XX, eram várias as comemorações que faziam durante o ano, sempre ligadas a Terra e ao que ela oferecia. O que também pode ter sido incorporada a outras culturas sem a preservação , se perdendo da origem.
Como explica Seu Felismar Manoel, as comemorações começavam com a Festa da Enchente das Goiabas, no equinócio do outono, lua nova de março, período das cheias dos rios. Comemoravam o Ano Novo Pury quando o Rio dos Bagres enchia. Quando não ocorria a enchente das goiabas, havia uma grande comoção e realizavam rituais. Usavam os tambores, formavam uma grande roda e dançavam em círculos sempre em movimento anti-horário e quando estacionados, dançavam dando passo à frente e passo atrás, pedindo a ‘Inhamandú/ Dokóra’, o Deus da criação de todas as coisas, que permitisse que o ‘Senhor do Tempo e da Fartura’ cuidasse do tempo favorável as colheitas.
Já a dança feita no auge da Festa da Floração do Milho ou da Fertilidade, em Junho, solstício inverno, lua cheia, naquele território, sofre aculturação da originária ‘Dança das Cordas’ e adquire traços da cultura europeia, passando ser chamada ‘Dança das Fitas Coloridas’, com as seis cores do milho no Mastro de ‘Grande Espírito Protetor’. Ela era dedicada a celebrar a ténu-arrí, gratidão, pelo êxito e beleza da plantação e pedir proteção para uma colheita exitosa ao ‘Grande Espírito Protetor’, o ‘Senhor do Tempo e da Fartura’, Tupã’.
Essa festa ocorria quando os cabelos do milho apontavam, antes do período da colheita, na época em que o pendão masculino soltava o pólen nas bonecas do milho que estavam apontando, fertilizando-as e gerando o milho. E era feita a colheita do milho verde. Nesse período, as espigas de milho, ‘bonecas de milho’, expõem os cabelos coloridos, conforme a época do plantio. Havia muitas danças, cantorias, fogueiras para assar o milho, com muitas comilanças de milho assado, cozido, mingau de milho verde e pamonha, broa de milho, bebida fermentada de milho, e água de fruta, o refresco.
Em uma das suas rememorações, quando contava aos mais jovens Puri contemporâneos em 2020, muito deles criados apartados da cultura rural, Nosso ancião Pury e lembrador da língua se recordava de uma das cantigas cantadas, geralmente enquanto as crianças dançavam, era chamada Ténu-arrí. Elas cantavam as estrofes e os presentes respondiam o refrão:
Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! Veio o vento, veio a chuva. Foi Tupã quem nos mandou. Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! Purizada muito alegre, o milho na terra plantou. Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! Veio a chuva, veio o sol. O milharal germinou. Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! O milharal floresceu e colorido ficou. Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! Vermelho, rosa, amarelo, verde, branco e roxeou. Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! As espigas encorparam e o grão do milho engordou. Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! Vai ter fartura purizada. O paiol locupletou. Carregou! Carregou! Mãe Natureza Carregou! Ténu-arrí ó bom Tupã. Vamos comer e dançar. Ténu-arrí, ténu-arrí.
O milho era vital naquela comunidade rural. Eram feitos colchões com palhas de milho e capim miúdo e o travesseiro de pãina e também folha de malva cheirosa e outras ervas medicinais. Os pury usavam a palha de milho, ou as ervas nos espaços dos "catres" (uma criação pury para substituir as redes), forravam com tecido e dormiam sobre eles; mais tarde fizeram um grande saco de tecido, que enchiam de palha, capim, ou folhas secas e colocavam nos catres para dormir sobre eles, como era um acolchoado, os brancos passaram a chamar de colchões. Essa tecnologia era vantajosa porque dava menos trabalho para por a tomar sol de vez em quando.
Os catres (criação pury) eram um tablado de bambu montado sobre quatro caibros de madeiras fincado no chão das residências. Sobre o tablado de bambu colocavam os colchões. Geralmente, próximo ao batedor se construíam as coaras para as roupas ensaboadas tomarem um pouco de sol. Como assegura Seu Felismar: “Daí veio o costume na minha região de chamar essa ação de "coarar" a roupa - e não o quarar português”. Nessas trilhas deixadas pelo passado, percorremos como Pury para o futuro.
Que legal! Estou muito imprssionado com o trabalho da comunidade deste sítio. Sou pesquisador em Resende e tento compor uma pesquisa sobre a Geografia por aqui. Estudar o povo Puri é essencial. Agradeço às elucidações, são lindas. Precisamos superar o estereótipo de "povo selvagem" e nossa contribuição é através da Educação. Parabéns!
Otimo texto com lindas informaçoes. Minha avo parte de meu pai era filha de indegena da regiao de Sul de Minas. Meu pai herdou o amor do cultivo da terra. Milho era sua alegria...toda munha infancia ajudei na colheita o fazer da pamonha, oque era uma grande festa comunitaria.
Que texto lindo. Muitas informações sobre a vida dos Puris contadas com graça e poesia. Deixa um gostinho de quero mais.
Também estou buscando mais conhecimento para dar entrada na minha ascendência; mas pelos meus estudos e apanhados, minha Bisavó, filha legítima de pai e mãe indígenas, habitava as Terras Puris do Sul de Minas Gerais, no interior da Cidade de São João Nepomuceno, num hoje distrito chamado Braúna. Tive o privilégio de conviver com ela e a 21 anos atrás ela descansou, quando já tinha 105 anos de registro. Até hoje tenho aparatos e itens dela guardado. Quando vejo uma pintura assim, me lembro da Goára dela e de como nos reuníamos no quintal. É uma satisfação enorme estar aqui participando. @eleomarrodrigues269
Informação com muita poesia... Muito bom!