Kemiumô Txaé Pury – Daniel Oliveira
Hoje gostaria de falar um pouco sobre uma planta de nossa ancestralidade que eu poderia facilmente dizer que é a planta que mais me ensinou até hoje: o maracujá do mato*, maracujá doce ou mesmo Passiflora alata – nome científico. Ela é uma trepadeira nativa do Brasil, pode ser encontrada em quase todo tipo de vegetação, mas é mais comum na Mata Atlântica.
As plantas que tenho hoje provavelmente são descendentes das que eu via quando tinha quatro, cinco anos em um matinho de difícil entrada. Na época da colheita do café as via floridas, até pegava algumas mais acessíveis para brincar. Mais tarde no caminhar das semanas tinham frutos, que inclusive é uma das lembranças mais bonitas que tenho da minha infância: minha mãe coletando alguns no meio desse matinho sem se machucar em nenhum espinho, ou galho fino, com a habilidade só alguém que passou a infância toda fazendo isso teria, inclusive na minha região essa é a fruta nativa mais comum de ser coletada nos dias de hoje, vistas como um presente da natureza.
Minha mãe conta que quando era criança via pés e mais pés de maracujá do mato na beira das estradas de terra que caminhava para ir à escola. É uma planta relativamente comum onde pessoas com ancestralidade Purí de minha região facilmente a citam como uma fruta antiga, do mato e associada à sua ancestralidade, principalmente, por sua aura silvestre e todo trabalho necessário para coletá-la como também pelo conhecido efeito calmante, sendo por isso evitado por algumas pessoas ou em determinadas horas do dia.
Quando digo esta é a planta que mais me ensinou até hoje, eu me refiro ao trabalho que tenho com elas nos últimos cinco anos. Os antigos pés de maracujá que conheci quando tinha quatro, cinco anos foram mantendo-se nesse matinho por anos e anos, com sementes caindo no chão e nascendo plantas novas, as antigas foram morrendo mas sempre tendo esta população. No entanto, com o tempo, um terreno vizinho mal capinado foi se recompondo lentamente, com alguns arbustos e árvores pequenas crescendo nesse espaço. Logo, logo este local se tornou ideal para a expansão dos maracujás e se tornou uma enorme moita, com o maracujazeiros, inclusive, tendo um comportamento bem agressivo. Cobriram árvores jovens, arbustos e locais que antes tinham um série de plantas passou a ter apenas eles, produziram tantos frutos que os passarinhos não davam conta de comer. E, quando eu ía coletar, sempre voltava com um bornal bem grande cheio e mesmo assim ainda ficava frutos para trás.
Com o tempo, no entanto, comecei a achar que seria legal plantar perto de casa, para isso, coletei alguns frutos estragados os abri e joguei as sementes com a polpa e tudo em locais que afofei próximo a uma cerca de bambu. Fiz isso em uma área bem extensa, mal sabia eu que isso seria um dos maiores aprendizados que teria. As sementes demoraram cerca de dois meses para nascerem, no começo fiquei assustado, pois estava chovendo bem e não imaginava que demoraria tanto. No entanto, quando nasceram foram mudas tão numerosas que parecia que todas as sementes haviam germinado.
As mudinhas foram crescendo de forma bem lenta, como muitas estavam bem próximas a outras o que atrapalha no desenvolvimento, resolvi trocar algumas mudinhas de lugar. Foi a atitude mais errada que eu poderia ter tomado, absolutamente todas que troquei de lugar morreram, evidenciando que não seria tão fácil cultivar uma planta totalmente selvagem, com isso nunca mais troquei nenhuma muda lugar.
Foi passando o tempo e reparei que passados quase um ano e eles mal haviam crescido. Fiquei um pouco desanimado, mas foi só começar o período de chuvas do outro ano que eles cresceram muito rápido e logo cobriram toda a cerca. Os que eu havia plantado em uma terra mais acinzentada ficaram com as folhas deformadas e cheias de manchas amarelas, mas mantiveram firmes e floresceram junto com os outros que estavam saudáveis.
Aquela primeira florada foi um marco pois uma série de insetos que não via pelo quintal começou a aparecer, beija-flores se tornaram muito mais comuns e um cheiro doce tomou o quintal, a primeira frutificação também foi um momento muito especial e produziu tanto que não tinha mais necessidade de coletar e passei inclusive a ter a necessidade de extrair a polpa para congelar para evitar que estragassem. Dei frutos para uma série de pessoas e ainda consegui guardar sementes para dar para algumas pessoas.
Terminada essa temporada de frutos vi que elas não estavam muito bem, inclusive boa parte dos que plantei na terra acinzentada haviam morrido, fui aconselhado a podá-los, mas não fiz isso pois no meu entender não seria legal já que na natureza isso não ocorreria, não sei dizer se foi um erro mas passou um ano e eles não melhoraram, pelo contrário parecem até que pioraram um pouco mas deram flores e frutificaram normalmente, é uma planta extremamente resistente a seca, o que achei estranho já que plantas com folhas grandes costumam ser muito exigentes a demanda de água.
É uma planta extremamente interessante em toda sua excentricidade. Apesar de todas suas vantagens deve ser observada com cuidado, descuidei um pouco de uma e ela estava cobrindo a copa de um pé de laranja, quando isto ocorre é questão de tempo até o pé de laranja morrer. Apesar disso fiquei com muita dó de podar. Uma coisa que ela faz que acho muito interessante é sua capacidade de esbanjar vitalidade em meio a outras plantas mortas. Quando ainda é uma muda fica intacta em meio às plantas mortas na época da seca, quando adulta floresce enquanto tudo ao seu redor parece seco e sem vida, como se estivesse dando um testemunho de esperança de que a chuva chegará a tempo para ela formar os frutos e suas sementes pegarão a melhor época para germinar.
(*) tem folhas largas e arredondadas, que estranhamente nenhum tipo de lagarta ou outros insetos comem. Floresce em uma época pouquíssimo comum, no auge da seca, entre final de julho e começo de agosto. Tem flores em um tom vermelho escuro com detalhes em vários tons de roxo, que atraem uma quantidade enorme de mangavas, beija-flores, vários tipos de marimbondos, com alguns até gostando de fazer suas caixinhas entre as folhas da planta. Apenas as flores polinizadas com o pólen das flores de outro pé de maracujá do mato dão origem a frutos, por isso a importância das mangavas suas principais polinizadoras e de ter pelo menos dois pés de maracujá plantados perto um do outro. Os frutos não têm um tamanho exato, podem ser pequenos com vinte sementes dentro como também ficar grande enchendo toda uma mão com um número incontável de sementes, sua polpa é doce com toque levemente ácido que lembra em nada o sabor de um maracujá comum. Quando maduro fica amarelo, mas não dura muito. Sua casca fica mole quando muito maduro e o fundo sempre amadurece primeiro, como uma espécie de sinal para que passarinhos venham comer e comecem por ali. A casca também é comestível tanto por pessoas quanto animais. Parece ter até uma preferência por ela entre os passarinhos. A casca sempre fica muito roída e a polpa sempre fica um pouco para trás, frutos comidos parcialmente por passarinhos atraem abelhas cachorras, marimbondos de vários tipos, formigas doceiras pretas. É uma planta onde todo seu ciclo atrai uma vasta biodiversidade, que a gente aprende a conviver com a maior naturalidade pois o maracujazeiro do mato produz tanto que não é problema algum dividir com os seres da natureza. Entre a germinação da semente e a primeira florada são necessários dois anos, quase sempre plantado por passarinhos que comem o fruto e levam as sementes para longe surgem espontaneamente, tendo maior preferência por locais em recuperação florestal e clareiras na mata, mas podem aparecer em quintais.
Que apareça no meu quintal.
Lindo texto!
Que lindo! Revivi o passado, obrigada.