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Cor de Cúia: A Ressurgência Pury em Fumaça - RJ

Atualizado: 9 de dez. de 2023

Xikito Pury

Nasci e cresci em Fumaça, distrito rural resendense, banhado pelo Rio Preto e seus afluentes, e que formam a magnífica Cachoeira da Fumaça, que é a maior cachoeira do estado do Rio de Janeiro, com mais de dois quilômetros de extensão em corredeiras.

Desde a mais tenra idade, sabia que havia "índios" que moravam nessa região, mas ficava sem entender o porquê de não existirem famílias com o fenótipo característico dos indígenas.

Ao longo da minha vida, nunca deixei de querer entender o que havia acontecido, mas as respostas eram curtas, enigmáticas e desestimuladas. Lembro-me de uma ou outra pessoa dizer que os "índios tinham morrido em sua maioria e que os que sobraram tinham ido para Minas Gerais".

Os anos se passaram perdi um pouco o interesse no assunto e acabei fazendo o que a maioria dos nascidos em Fumaça fazem: fui para o centro urbano vender minha mão-de-obra. Vários anos se passaram e num momento estressante e deprimente, em que perdi meu emprego e "casamento subiu pro telhado", retornei para a Vila da Fumaça. Estava um pouco desencantado da vida e queria tirar um tempo, fazer alguma coisa para alguém... Assumi a Associação de Moradores de Vila da Fumaça e comecei a ter um contato maior com o meu povo. Sentia a necessidade de valorização do meu povo como um todo, e aumentando minha própria autoestima, minha própria valorização.

Enfrentei vários desafios, mas consegui realizar muitas coisas legais!

Nesse período as drogas já estavam sendo disseminadas no campo e eu me preocupava muito com os meus jovens conterrâneos, tão sem opções e ferramentas para lidar com os variados problemas... Nesse período formei um grupo de teatro amador, chamado Em Nome da Rosa, e montamos algumas peças escritas por mim mesmo, organizei o texto e a roupagem do espetáculo da Paixão e Morte de Jesus para as Semanas Santas de Fumaça, estética e texto que continuam a ser são utilizados.

Pertence ao mesmo período de cuidado e valorização do meu povo a iniciativa de escrever suas histórias, tendo começado a fazer isso em torno de 2003 ou 2005. Se for contar os textos de teatro e as festas em que fazia Galeria de Retratos Antigos como resgate histórico-cultural do meu povo, posso falar que começou em 2003.

Mas foi a partir de 2005 que comprei um gravadorzinho e saí em campo para entrevistar os muitos idosos da minha região. No começo, eu tinha apenas o desejo de manter vivas as memórias dos anciãos, quaisquer memórias... Não havia um direcionamento padrão para as perguntas. Eles tinham a liberdade de falarem aquilo que queriam, mas com o tempo, fiz um questionário comum para todos.

Através desse questionário, eles faziam um passeio em todas as fases de suas vidas, pedia-lhes que me contassem "causos", lendas, comidas, brincadeiras de criança, enfim: os vários aspectos de suas sociabilidades durante suas vidas. Sempre havia perguntas para saber de suas origens, muitos tinham ascendência indígena, mas falavam de maneira acanhada sobre si mesmos... de modo geral, se sentiam mais confortáveis em apontar outras pessoas como descendentes. E o faziam de uma maneira curiosa: eles falavam que o compadre "tal" ou a comadre "tal" eram caboclos, em suas linguagens costumeiras: "cabôcos". Entendia, pois esse termo é uma gíria muito antiga no meio rural que é a região de Fumaça. Porém, o termo que mais me confundiu foi o "Cor de Cúia"...

Conheci o historiador Marcelo Santana Lemos, em 2005, e apresentei-lhe vários desses "meus" idosos, que em sua quase totalidade já são falecidos. Formamos amizade e, desde então, compartilhamos muitas informações, fazendo um intercâmbio entre estudos práticos e acadêmicos dessas histórias.

Era muito difícil entender o conceito de "Cor de Cuia", mas entre os vários idosos, nenhum deles colaborou tanto com minhas pesquisas, como a Isabel Teixeira de Arantes, a saudosa e reverenciável D. Bela... essa senhora analfabeta funcional, era uma doutora em sociologia!!! Ela tinha uma memória prodigiosa, conhecia a história das origens da maioria das famílias fumacenses, além do conhecimento de vários remédios com ervas. Era uma pessoa muito simples e gentil, que acumulou muito conhecimento sobre as várias famílias, pois era muito solícita com as mulheres que tinham filhos, sempre disposta a ajudá-las no pós-parto. Posso dizer, sem sobrar dúvidas, que grosso modo, ela foi direcionando a minha pesquisa, que também era cartorária. Na sua simplicidade, ela apontava algumas famílias dizendo que tinham "Cor de Cúia", ou que eram caboclos.

Deduzi então, que ambos os termos significavam a mesma coisa: eram descendentes dos índios. Mas tinha uma diferença entre si, que tive que ter astúcia para entender: o termo "Cor de Cuia" era mais usado para o outro, para "os compadres e comadres", de certa maneira quem assim se referia ao outro, de alguma maneira se excluíam dessa categorização. O engraçado, é que os outros, como num espelho, se referiam aos que antes os haviam apontado nessa categorização, com a mesma expressão. Entendi que antes de ser uma categorização, era um código. Eles e elas sabiam que eram descendentes dos índios, mas por conta do apagamento forçado de suas memórias históricas, culturais e afetivas, tiveram que ocultar de seus próprios descendentes essas informações...

Fui saber que eu mesmo era descendente de índios, só no ano de 2008, quando entrevistei o "Índio Cor de Cuia" Geraldo Martiano. Que me revelou ser primo da minha avó materna. Mas foi durante uma entrevista que fiz com a prima de 1° grau de minha mãe Laura, que ela revelou que minha bisavó era índia Pury. E foi assim, transversalmente, que descobri minha ancestralidade indígena e me senti muito orgulhoso de pertencer a esse povo que amo e que já era objeto do meu estudo.

Neste ano de 2023, resolvi fazer minha autodeclaração indígena e fui aceito no Movimento de Ressurgência Pury (MRP). Criamos o Movimento de Ressurgência Pury da Bacia do Rio Preto e denominamos o Núcleo Pury Cor de Cuia, como o nome do coletivo que estará radicado em Vila da Fumaça, pretendendo com isso associar outros membros e termos a nossa história e a nossa cultura respeitada e valorizada e reconhecida pelo poder público, mas antes de mais nada: por nós mesmos!

Agradeço à Dokóra por esse momento de florescência e é ressurgência vigorosa do nosso Povo Pury. Dokóra nos preservou e nos acendeu como tochas para iluminarmos o caminho de muitos, para nos aquecer e para que aqueçamos outros pares.

Se Dokóra nos acendeu: ninguém nos apagará!!!

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