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Foto do escritorPuri Vivo

A Serra!

Por Kemiumô Txaé Pury (*)


A Serra, enquanto território, uma só! Mas, no entendimento e oralidade de seu povo são várias que juntas guardam histórias, caminhos e cultura. É uma terra onde a agricultura familiar resiste e por meio de seus quintais e lavouras a agroecologia é próspera! Seu povo é um povo de fé e, nas suas expressões religiosas, acredita que a água e os picos das montanhas são sagrados, consagrando esses lugares com cruzeiros e imagens.

Os registros mais antigos sobre a região são de bandeirantes, que, na década de 1690, após passarem pela região, voltaram para São Paulo falando de uma grande Serra cheia de aldeias na beira de seus rios; os indígenas dessas aldeias eram os orgulhosos Purí-Arrepiados. Em um rio desta terra próximo a uma casa registrada apenas como “Casa da Casca” foi encontrado ouro. O primeiro ouro de Minas Gerais!

Mas esse ouro demorou muito para ser roubado, a descoberta de uma enorme quantidade de ouro na região de Ouro Preto e Mariana poucos anos depois e o fato dos povos indígenas da bacia do Rio Doce não tolerarem a presença constante de brancos, adiou em cerca de 80 anos a invasão.

A resistência do povo da Serra começou aí! Os indígenas ao negarem aquela presença hostil que via seus rios e montanhas apenas como uma fonte de uma estranha riqueza e seu povo apenas como pessoas a serem exploradas, mostraram que não iriam aceitar a destruição de seu mundo e modo de vida.

Mas o Ouro de Mariana começou a acabar, e aqueles homens cheios de cobiça se lembraram do ouro do rio da Casa da Casca; mas o que é afinal a Casa da Casca? Será que era um tipo de casa que os Purí-Arrepiados faziam? Não sabemos, mas ela acabou se tornando uma lenda e uma referência, era na bacia do Rio Doce e próxima a Serra dos Arrepiados, o primeiro nome que a Serra, nossa terra-mãe, recebeu. 

Pelo ouro, guerras foram travadas, pelas armas e pelas doenças, os Purí-Arrepiados foram atacados, os rios de sua Serra tiveram seus fundos revirados, suas margens destruídas, nem as montanhas foram poupadas e uma mina de ouro escavada nos pés de um monte deu origem a vila de São Miguel e Alma dos Arrepiados, Hoje a cidade de Araponga (MG).

O ouro foi explorado até acabar, os Purí sobreviventes e que não foram escravizados fugiram para o alto da Serra, com o ouro acabando os invasores se espalharam, abrindo em meio às matas das terras mais baixas várias fazendas.

O tempo passou, a mata recuou, Boa parte dos numerosos Purí foram amontoados em vilas para aprenderem a dar lucro a seus reis e senhores, essas vilas deram origem aos territórios dos antigos municípios de Muriaé, Abre Campo e Miraí, esses municípios aos se desmembrarem, deram origem a vários dos atuais municípios da Serra do Brigadeiro.

O tempo passou mais ainda e nessa época quase todos Purí já não viviam mais nas matas, muitos das gerações mais novas já não tinham os traços físicos antigos, junto aos negros eram a mão de obra que os coronéis exploravam.

Lavouras, alambiques e cafezais espalharam-se por todas as terras mais baixas, com a mata resistindo nas terras altas abraçadas pelas nuvens, essa mata era cercada e protegida pelos incontáveis sítios daqueles que muitas vezes já não tinham mais seus cabelos lisos, seus olhos puxados, mas no sangue e cultura carregavam o espírito dos Purí.

Do desejo de liberdade escravizados criaram quilombos.

Italianos, alemães e várias outras identidades estrangeiras começaram a chegar para trabalhar nas fazendas de café.

Anos se passaram, reis deram lugares a presidentes, mas nas grotas humildes da Serra a vida pouco mudava. Seu povo fazia suas casas de pau-a-pique e as cobriram com sapé, indaiá ou tabuinha, plantavam suas roças de milho, feijão, arroz, mandioca, amendoim e cana, em seus quintais as ervas que curam e os mais variados legumes, da mata tiravam de forma responsável os cabos de enxada, a taquara dos artesanatos, a madeira dos pilões, o palmito e o mel.

Trabalhavam nas lavouras de café, e na época da panha as várias famílias de diversas origens se encontravam na lida diária, panhando o café, o carregando, secando, enchendo as carroças e carros de boi. Quando a colheita acabava eram feitas as festas de acabada de café. Em todo o movimento gerado no trabalho e festas que o café trazia, boa parte dos nossos bisavós e avós se conheceram. Seu povo que já era mestiço desde os filhos das moças Purí “pegas a laço” e dos quilombos fundados em conjunto pelos negros e os Purí. Ficou com suas muitas raízes ainda mais unidas, não existindo hoje praticamente nenhuma família de agricultores familiares da Serra que não tenha pelo menos duas ou três raízes.

Da lida com as roças o povo pobre juntou dinheiro e realizou o sonho de ter sua própria casa e sua terra, fazendas deram lugar a sítios e nascia assim a produção familiar do café. Tudo parecia estar caminhando para um futuro bom, mas surge uma nova ameaça vinda de fora. Uma empresa viu nas matas do alto da Serra, que os Purí conservavam, uma ótima fonte de madeira para fazer carvão. Nessa época, os Purí já chamados de roceiros, viram sua frondosa mata cair para virar lenha. Contrariados e invadidos, o povo não sabia o que fazer, já que era época de governo violento que não aceitava ser contrariado.

Esse governo passou, as antigas árvores grossas já não estavam mais de pé, mas a mata da Serra perseverou e conseguiu resistir até que uma lei estadual veio para seu socorro. Era proibido o corte das árvores para a produção de carvão e um parque estadual estava prestes a ser criado. O parque era uma ideia muito boa, mas quem o propôs só via as árvores e as montanhas, seus olhos eram completamente cegos para a parte humana e não viram que a cota mil iria expulsar centenas de famílias das suas casas. Mal sabia quem propôs a cota mil que povo da Serra era um povo de luta e não aceitaria ser expulso de sua Serra-mãe. A cota mil foi abandonada, o diálogo foi aberto, apenas as terras que já eram mata se tornaram parque.

O parque apesar da dor de cabeça trouxe ao povo a discussão sobre sua identidade, seu território, seu modo de vida, sua ancestralidade e seus desejos para o futuro. A agricultura familiar, a agroecologia e o turismo seriam a partir dali o modo de vida e trabalho daquele povo. A ancestralidade Purí escondida e falada apenas dentro de casa a um bom tempo começou a sair de baixo da pedra.

Tudo caminhava para ficar tudo bem, até que uma nova empresa bateu à nossa porta, querendo levar agora a cabeceira dos nossos morros, nos incomodar com seus enormes caminhões e querendo gerar lucro ferindo aquela que é impossível descrever em qualquer preço, valor ou grandeza em dinheiro, nossa amada Serra-mãe. Mas assim como em toda nossa história o povo da Serra mostrará que é um povo de luta!


Kemiumô Txaé Pury, Daniel Oliveira, é membro do Movimento de Ressurgência Purí, movimento fundado em 2014 com a missão de promover o fortalecimento identitário e cultural do povo Purí.

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