Por Antônio Marcos Dutra da Silva Puri¹ & Náma Puri (Carmelita Lopes)²
Um capítulo incontornável da história do povo Puri é o das listas de palavras, anotadas por coletores no século XIX. Ainda que haja registros históricos de encontro com indígenas ancestrais da etnia, desde ao menos o século XVII, foi no oitocentos que as palavras da língua ganharam notação. Dentre os diversos anotadores alguns são notáveis pela sua influência entre os registros de viagens no país, as famosas expedições científicas, como a de Spix e Von Martius, que anotariam 45 vocábulos sem, entretanto, registrar seus informantes. Martius lançaria as bases do que viria a ser o modo de se pensar “o nascente discurso nacional brasileiro” e que justificaria e serviria de modelo para a idealização da figura do indígena brasileiro no Romantismo literário e musical.
Em 1814, Wilhem von Eschwege, fora capaz de perceber a variedade de vogais da língua puri, e tentou transcrevê-la, usando a ortografia e norma da língua alemã, também não esclareceu sobre seus informantes. Em 1824, Edouard Petrovich Ménetriès anotara o maior número de vocábulos: 183. Apesar da quantidade maior, também não nomeou seus informantes. O mesmo fenômeno se observa em outros anotadores, como Adrien Balbi que transcreve palavras Puri em 1826, ou o nome de Phillippe Rey que publicaria um pequeno estudo em Bulletin de la Société d’Anthropologie de Paris (1884), com glossário do idioma Krenak e Puri, desse último transcreveria 120 palavras a partir de uma senhora idosa, é a única coisa que revelou.
Além dos citados, não custaria ajuntar o nome de Dom Pedro II que se detivera numa tarde em Vitória (ES) com alguns Puri, oriundos do aldeamento Imperial Afonsino, hoje, município de Conceição de Castelo (ES), dando vazão a seu interesse pelo conhecimento e curiosidade anotara as palavras que ouviu, sem nada revelar dos informantes Puri em sua viagem.
Já o engenheiro Alberto de Noronha Torrezão em apenas dois dias recolheu o vocabulário que acabou sendo publicado na prestigiosa revista dos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) com palavras Puri em 1889, o engenheiro registrou que dois ancestrais foram seus informantes: Manoel Jozé Pereira e seu sobrinho-neto Antônio Francisco Pereira. Talvez ambos e Torrezão (como anotador) sejam responsáveis pela lista mais popular entre as comunidades Puri, em seu esforço de retomada do idioma na contemporaneidade.
Mas com todos esses homens... surge a pergunta: quem eram esses Puri, que vivenciaram a fala ou a memória daquelas palavras, de alguma forma eles permitiram a permanência de palavras que doutra forma não poderiam servir de base para linguistas e historiadores nem de matéria prima para a retomada da língua... quem eram essas pessoas?
De verdade, pouco sabemos. Ao associarmos as listas a seus anotadores corremos o risco de identificar o ouvinte com aquelas palavras, perdendo do horizonte que elas eram bem comuns, circulando, modificando-se, ganhando vida e expressão a cada enunciação de um falante. Esse esquecimento tem como corolário serem esses informantes postos à sombra, quando justamente eles que forneceram as bases do conhecimento disponível hoje para pesquisadores da língua, acadêmicos e Puri. Se Torrezão nomeia seus informantes, a regra foi o olvido daqueles que de fato sabiam a língua. Reproduzindo mesmo que em um ambiente cultural positivo, o jogo em que as populações originárias e seus indivíduos são representações vagas, não diferenciadas, abrindo a possibilidade de que se note o olhar que privilegia a palavra ao indivíduo, posto que este não estava em pé de igualdade.
No séc. XX, impregnados pelos valores oriundos do processo colonial que criou meios conscientes e inconscientes de classificar pessoas, cores e culturas, os informantes, os poucos remanescentes Puri que ainda restavam, permaneceram anônimos e desprestigiados. Em qualquer breve levantamento bibliográfico, vê-se que foram feitos trabalhos acadêmicos na área, mas sempre remetendo a um passado distante, quando não; aos registros históricos dos coletores, talvez por fazer parte do imaginário coletivo que o povo Puri não mais existia.
No presente século, uma nova geração de pesquisadores, entusiastas e indígenas Puri se voltou para os registros dos coletores e dos trabalhos acadêmicos, deixando em segundo plano, o conhecimento da história oral, a memória dos idosos enfim, os saberes dos mais velhos que permaneceu ainda desprestigiada. Tal situação perdurou até que o historiador Marcelo Lemos apresentou Felismar Manoel (Nhãmanrúri Schuteh) a comunidade Puri. Nascido em 1939, criado em aldeia, integrante da terceira geração de originários Puri da Região da Fazenda dos Gregórios – Cruzeiro - Guiricema, (zona da mata) MG. Felismar Manoel punha em xeque o coletivo imaginário de que não havia nenhuma memória viva da língua, e que, portanto, nossos anciãos de segunda ou terceira geração após o modo de vida tradicional, tinham muito a ensinar enquanto lembradores.
E é esse lembrador Felismar Manoel (Nhãmanrúri Schuteh), nosso Ope-antha, que, no impulso de apenas contar suas histórias, suas memórias, foi nos trazendo suas lembranças de palavras em língua Puri que eram usadas em sua região e aos poucos nós, ainda que tardiamente, fomos descobrindo o tesouro que trazia.
Foi assim que diferenças entre anotadores do século XIX para o mesmo objeto ou classificação se tornaram transparentes pois a riqueza e variedade não traduzia apenas diferenças de modo de falar em comunidades distintas, mas principalmente um sistema complexo e minuciosos de classificação da língua de objetos, animais, pessoas em sua fase de crescimento e fenômenos que aos poucos e, graças a Felismar Manoel passam a ser compreendidas.
Em 1957, quando era professor de Puri na Escola Felício (Rufino) da Silva – Pé da Serra de Tuitinga-MG, para filhos de puri e italiano, Felismar elaborou o primeiro sistema escrito para língua Puri feito por um indigéna e também começou seu belo trabalho de glossário, rememoração e sistema de ensino da língua. Hoje várias de suas recordações semânticas e de hábitos veem sendo confirmadas por mais velhos Puri.
Como guardião e lembrador o Ope-antha Felismar Manoel (Nhãmanrúri Schuteh) tem trazido novo ânimo no esforço de retomar a língua Puri, e ao contrário dos demais informantes do século XIX, quase anônimos, sua presença sempre gentil e luminosa tem ensinado o valor da persistência e alegria de trilhar esse caminho Puri com palavras, no esforço de honrar os ancestrais e sermos indígenas, missão que até o fim esperamos ver cumprida.
¹Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998), é especialista em Relações Internacionais (Pós-Graduação Lato sensu em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes - 2009), Mestre em Relações Internacionais Pela PUC-Rio (2013), e Doutor em Ciência Política (IESP-UERJ). Faz parte do grupo de Pesquisa Beemote (IESP-UERJ) Desde de 2004 tem participado das atividades literárias, foi colunista do jornal impresso Tribuna da Impressa. Foi vencedor da Bolsa de Criação Literária FLIP (2004), e também vencedor do Prêmio Jeune Littérature Latino-Américaine (2008) promovido pela MEET (Saint-Nazaire) na França. De ambos os prêmios resultaram seus dois livros Matacavalos (2010) e Dias de Faulkner (2008), este publicado também na França. Tem desenvolvido pesquisa em Relações Internacionais, Literatura Brasileira, Pensamento Político Brasileiro, especialmente no século XIX.
¹Carmelita Lopes é pós-graduada em Especialização em Gerência de Projetos pela FGV, Graduada em Pedagogia e Letras pela FINAM – RJ, Profa aposentada de Língua Portuguesa pela FAETEC e Mestranda Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND) do Museu Nacional – UFRJ. Foi colaboradora na elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), Ex-presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro (CONSEA-Rio), Cofundadora do Movimento de Ressurgência Puri, Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas – CEDIND/RJ. Náma Puri (Rio Puri) é o seu nome adotado na autodeclaração indígena da etnia Puri.
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